quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Madame Hemingway

Ernest Hemingway em 1950

Não é um livro arrebatador, daqueles que abalam as minhas estruturas, mas é agradável de ler e, muitas vezes, até comovente.
Sendo uma obra de ficção cujas personagens principais são figuras famosas, tem um razoável rigor biográfico e, sobretudo, é um pretexto para reflectir na fragilidade/complexidade das paixões e dos afectos e da incapacidade humana para os viver sem passar pelo sofrimento.


Madame Hemingway”, de Paula McLain.



Carta escrita por Hadley Richardson a Ernest Hemingway, após a separação:

Querido Tatie, de certo modo, amo-te agora mais do que alguma vez amei, e apesar das pessoas verem os votos matrimoniais de maneiras diferentes, quando disse os meus foi até à morte. Se queres saber, estou pronta para ser tua para sempre, mas como te apaixonaste e queres casar com outra pessoa, sinto que não tenho outra escolha senão afastar-me e deixar-te fazê-lo. Os cem dias estão oficialmente terminados. Foi uma péssima ideia, e agora envergonha-me. Diz à Pauline o que é que decidiste. Podes ver Bumby as vezes que quiseres. Ele é muito teu filho, e ama-te e sente a tua falta. Mas, por favor, vamos apenas escrever acerca do divórcio e não falar do assunto. Não posso continuar a discutir contigo e também não te posso ver muitas vezes, porque é demasiado doloroso. Seremos sempre amigos – amigos delicados, e amar-te-ei até morrer, sabes. Sempre tua, a Gata”.

Resposta:

Minha querida Hadley, não sei como te agradecer a tua carta tão corajosa. Tenho andado preocupado contigo e com todos nós, devido a este terrível impasse. Tratámos as coisas dum modo tão doloroso, nenhum de nós a saber como seguir em frente sem causar maiores danos. Mas se o divórcio é o próximo passo necessário, então acredito que, assim que começarmos, iremos sentir-nos mais fortes, melhores e cada vez mais iguais a nós mesmos.”
…………….
Acho que és uma mãe maravilhosa, e que Bumby não poderia estar melhor do que entregue às tuas mãos adoráveis e capazes. És tudo que existe de bom, correcto e verdadeiro – e agora vejo isso tão claramente na maneira como procedeste e ouviste o teu coração. Mudaste-me mais do que podes imaginar, e serás sempre uma parte daquilo que sou. Isso foi uma coisa que aprendi com tudo isto. Ninguém que se ame se perde verdadeiramente.

Ernest”

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O Físico Prodigioso

É o próprio autor quem diz,

“Este conto, ou, mais exactamente, novela, é desenvolvimento muito ampliado e, se quiserem, muito deturpado de dois ‘exemplos’ do Orto do Esposo, o belo livro moralístico-religioso da literatura portuguesa da primeira metade do século XV. Estes dois exemplos narrativos – o do homem com poderes mágicos de cura com o seu sangue e de ressurreição dos mortos, e o homem que não pôde ser enforcado, porque o Diabo o protegia levantando-o no ar – nada têm que ver um com o outro, e estão mesmo em lugares muito diversos no texto quatrocentista: o primeiro no Capítulo I do Livro III, e o segundo no Capítulo XI do Livro IV.”

Morra o bispo e morra o papa,
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras,
maila sua virgaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra o rei e morra o conde,
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco,
maila má judicaria.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram pais e morram filhos,
maila toda afilharia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morram marido e mulher,
maila casamentaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra amigo, morra amante,
mailo o amor que se perdia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra tudo, minha gente,
vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!


Jorge de Sena, in O Físico Prodigioso